O grupo de estudos de organizações populares autônomas e algumas possíveis contribuições para a gestão de um espaço autônomo

No início de 2013 foi formado na Casa Mafalda um grupo dedicado ao estudo de organizações políticas, considerando principalmente movimentos populares e autônomos. Um dos objetivos da criação do grupo foi suprir a necessidade de levantar e conhecer experiências, problemas e soluções pelos quais outros coletivos já tinham passado, buscando atalhos que ajudassem na organização da Casa Mafalda e evitando a desnecessária reinvenção da roda. Ao longo do ano, a perspectiva de estudos foi além das organizações políticas em seu sentido institucional – embora não se tenha deixado de estudá-las, sempre com o foco em formas horizontais e autônomas de organização. O grupo de estudos foi aberto e teve a participação de alguns membros do coletivo responsável pela gestão da Casa e de outras pessoas que se interessaram pelas discussões a partir da divulgação feita por diversos meios. O caráter aberto do grupo garantiu a riqueza dos pontos de vista apresentados sobre os textos. A intenção deste texto é levantar algumas impressões sobre elementos que entendemos como importantes para a organização da Casa e que têm aos poucos sendo incorporados às práticas da gestão do espaço a partir dos estudos realizados por esse grupo.

A primeira impressão que veio, já no primeiro encontro do grupo, em que foi estudada a apresentação da Organização Anarquista Terra e Liberdade, foi que existem mecanismos para evitar que uma organização perca de vista sua proposta inicial. O estabelecimento de princípios, adotados como um norte e não como uma regra, é um desses mecanismos. Esse tema dialoga diretamente com a gestão da Casa Mafalda. Ao longo dos últimos anos, muitas pessoas relacionadas com esse espaço já haviam apontado para a necessidade de se estabelecer uma pequena lista de princípios sob o intuito não de engessar a organização, mas de tentar garantir um acordo sobre elementos fundamentais para garantir a coesão do grupo e para manter no horizonte os objetivos idealizados na criação do espaço. Outros textos, como  “Movimentos sociais, burocratização e poder popular” de Felipe Corrêa, “A tirania das organizações sem estrutura” de Jo Freeman e uma conversa com pessoas do coletivo Ativismo ABC fortaleceram a importância de se estabelecer princípios para garantir a coesão da organização. Atualmente, o coletivo que gere a Casa Mafalda vem dedicando parte de seu tempo para estruturar com clareza uma lista de princípios que seja um denominador comum a todos os seus membros.

Outra impressão também referida aos estudos foi a da necessidade de criação de estruturas e mecanismos para impedir o desennvolvimento de dinâmicas internas ao coletivo que perpetuem opressões e que produzam hierarquias, privilégios e burocracias. Os textos de Jo Freeman, de Pierre Clastres, “Abandone o ativismo” da Coleção Baderna e o de Felipe Corrêa apontam para essa reflexão, sendo que este último inclusive apresenta uma proposta bem esquemática, com tabelas e diagramas. Uma divisão de tarefas sem alguns cuidados, por exemplo, pode ser fértil apenas para se estabelecer hierarquias e privilégios indesejáveis, fazendo com que uma especialização (como conhecer mais sobre um determinado assunto, ter mais habilidade com a execução de uma tarefa ou possuir mais recursos do que outros e outras para se atingir um determinado objetivo) se torne não apenas um espécie de profissionalização, mas vá além, dando um status diferenciado a uma pessoa do coletivo a ponto de perturbar a horizontalidade do grupo. Como a Casa Mafalda já vivenciou uma situação com esses elementos, hoje há uma atenção especial para que as tarefas sejam cuidadosamente divididas, principalmente no que diz respeito a práticas socialmente assinaladas a um gênero ou outro.

Outra reflexão trazida pelos estudos diz respeito à importância da pluralidade política e de pontos de vista para a construção de novas práticas que visem à criação de poder popular e a transformação social. Textos como o de David Graeber, “Algumas ideias sobre rumos de pensamentos e organização”, e de Wilson Neto, sobre o EZLN, sugerem como a partir do conhecimento de outras culturas e vivências é possível não apenas reconhecer práticas já valorizadas pelos movimentos populares (como a tomada de decisão por consenso, recorrente em povos que tiveram pouco contato com a cultura do Ocidente), mas também perceber contradições quando se reproduz uma determinada opressão mesmo que de forma inconsciente (como apontam os membros do EZLN norteados pela literatura acadêmica, que reconheceram na diversidade das comunidades indígenas uma visão de mundo diferente, mas não menos revolucionária). Tal reflexão contribui para o debate de como a diversidade pode ser incorporada efetivamente às organizações ditas populares que têm a perspectiva de reconhecer nas diferenças um potencial transformador.

Cada participante do gripo provavelmente teve uma reflexão diferente sobre os estudos. É pouco provável que todos elenquem percepções iguais às aqui colocadas, pois cada história pessoal ajuda a determinar como se vê o mundo, com olhares diferentes. Ainda assim, acreditamos que membros de coletivos em contínua formação, como a Casa Mafalda, em algum momento e algum grau se deparam com dificuldades e contradições impostas por circunstâncias que são comuns a qualquer organização – como hierarquias espontâneas e a contradição de se manter financeiramente um espaço anticapitalista. Nossa intenção com este texto não é dizer como cada coletivo deve se comportar ou se preparar para lidar com tais circunstâncias, mas apenas relatar de forma breve como percebemos que nossos estudos dialogam com nossa prática enquanto coletivo gestor de um espaço autônomo. O estudo de organizações ou movimentos que tenham o mesmo caráter – no caso da Casa Mafalda, espaços autônomos e autogeridos – pode colocar na perspectiva de nosso grupo de estudos leituras que talvez contribuam com questões específicas à natureza de nossa organização.

Para ver os textos estudados no ano de 2013, acesse o link: http://goo.gl/gcGAje

O grupo de estudos sobre organizações populares autônomas continua em 2014, quinzenalmente, às segundas-feiras. Para maiores informações e a agenda completa de atividades, acesse nosso site  ou entre em contato conosco.

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