Reconhecemos quatro momentos na história da Casa Mafalda, caracterizados pelas mudanças de objetivos, demandas e interesses que permearam as relações ao longo desses dois anos entre o time Autônomos & Autônomas FC e o grupo de pessoas que se responsabilizaram pela gestão da Casa. Segue um relato sobre esses quatro momentos, finalizando com uma análise crítica pontuando algumas sugestões e encaminhamentos que talvez interessem a outras organizações, pensando em contribuir para o debate sobre como garantir a integridade de um coletivo autônomo que se pretende horizontal.
Primeiro momento: a divisão do trabalho
A Casa nasceu com a identidade de uma sede de um time de futebol amador, cujos jogadores dividiam entre si tarefas pontuais e claras, como dar conta das festas para arrecadar o valor referente ao aluguel e às dívidas adquiridas na compra do ponto. O ponto comercial adquirido era – antes de ser passado ao time – uma balada, uma casa para festas e shows que, mesmo após essa mudança, não perdeu o seu caráter, mas sim passou a ser também sede do Auto. Claro que houve ajustes na organização das festas, a fim de adequar a cultura herdada com a aquisição do ponto a alguns princípios do time, como o de autogestão e horizontalidade. Obviamente algumas pessoas se envolviam mais que outras por conta da disponibilidade de tempo e, de forma quase imperceptível, por interesses diferentes. As demandas eram pontuais e os objetivos forçadamente traçados – pagar dívidas – eram atingidos com esforço. No entanto, o local não era uma mera sede de um time de futebol. Na Casa ocorriam também eventos de formação e divulgação política e cultural, que refletiam o interesse de alguns membros do time. Dessa maneira, com o passar do tempo esse tipo de atividade passou a ter menor atenção do que outras que visavam o pagamento das dívidas.
Depois de meses, um grupo de pessoas passou a se reconhecer como gestão da Casa, dada a repetida ausência (a princípio justificada) de grande parte do time nos fóruns de decisão e encaminhamentos. Nesse instante, instituiu-se uma divisão clara de tarefas: pessoas que cuidariam dos aspectos burocráticos da Casa se distinguiam dos colaboradores. Aos poucos se incorporaram à gestão pessoas que não faziam parte do time, que se interessavam pela proposta política da Casa. Apesar de a gestão ser aberta, eram sempre as mesmas pessoas a participar de suas reuniões. A constituição desse grupo gestor era legítima: afinal, organizar um espaço autônomo depende de reconhecer problemas que não se resolveriam por si só. O time e a gestão repetiam como num mantra que, uma vez quitadas as dívidas, os dias seriam melhores e se poderia voltar a fazer as atividades idealizadas no início, já que as demandas que nos eram impostas pelo contexto – pagar dívidas – não se sobreporiam mais aos objetivos do time e da gestão.
Segundo momento: da lama ao caos
Quando descobriu-se que o piso da Casa era tão firme quanto um mangue, obrigando o abandono do espaço, houve a necessidade da busca de outro lugar, e o contexto em que se dava a construção da Casa mudou bruscamente, embora a demanda permanecesse a mesma. Adquiriam-se novas dívidas para entregar a Casa antiga à imobiliária e mudava-se para uma Casa muito mais adequada para uma família do que para uma balada, uma vez que a vizinhança e o hospital em frente impossibilitavam eventos com som intenso varando a madrugada. Concluiu-se não ser mais possível levar a Casa no mesmo ritmo: seriam realizados menos shows e festas – o que para alguns era positivo, pois haveria mais espaço para os eventos de formação e divulgação político-cultural. Nesse ponto, pôde-se reconhecer uma redução no número de pessoas comprometidas com a manutenção da Casa. O primeiro indício veio com a mudança e a entrega da Casa antiga, realizadas estritamente por algumas das pessoas que se reconheciam enquanto gestão; a expectativa (não correspondida) era de que duas tarefas tão grandes fossem bancadas por um número maior de pessoas – afinal, se o espaço era sede de um time de futebol, seus jogadores deveriam demonstrar que eram responsáveis por ele. O segundo indício veio provavelmente com a mudança do caráter dos eventos. Aconteciam menos festas ao mesmo tempo em que menos pessoas se responsabilizavam por dar suporte a elas. A discussão sobre objetivos da Casa passou a se tornar frequente, embora esses objetivos nunca tivessem sido claramente traçados nem pelo time nem pela gestão em seu passado. As demandas – pagar dívidas – eram praticamente as mesmas, mas o contexto mudara radicalmente: a gestão, constituída legitimamente enquanto grupo responsável por tocar a Casa e que, embora aberta, nunca teve participação rotativa de todos os envolvidos com time e Casa Mafalda, ao longo do tempo teve que lidar com situações diferentes, desenvolvendo práticas distintas e gerando novas demandas, que obviamente não refletiam mais a totalidade das aspirações do time. Todos esses elementos só fizeram crescer a identidade do grupo instituído como gestão e consolidá-lo como corpo autônomo dentro de uma estrutura dita horizontal. Aquela Casa, que em seu passado expressava práticas muito mais afins com uma sede de um time de futebol, passou a ser cada vez mais ocupada pela gestão que, talvez por se apegar mais ao espaço após a primeira fase, se apropriava mais de suas potencialidades, passando a desenvolver atividades que obviamente correspondiam mais aos seus interesses do que aos do time. Como consequência, a sede do Auto perdeu terreno para um espaço autônomo de formação e divulgação político-cultural, embora as duas propostas coexistissem e fossem praticadas sem qualquer conflito aparente.
Terceiro momento: quando Eco e Narciso se encontram (?)
Uma série de debates internos reforçavam cada vez mais as diferenças dos objetivos das pessoas que participavam da gestão com os do time, e o não reconhecimento de um grupo no outro. Neste ponto, é preciso ser justo: havia pessoas que se esforçavam por dar elo aos grupos, buscando criar situações de convívio e ajuda mútua. Outras pessoas sentiam que o sentido daquele desenrolar não era bom e por isso se engajaram para transformar em objetivo de curto prazo por fim as diferenças entre gestão e time. No entanto, embora alguns reconhecessem essa necessidade, eram realmente poucos os que de fato praticavam ações a fim de estreitar os laços e seria irreal dizer que a maioria das pessoas da Casa aderiram a esse objetivo.
Numa tentativa de reconciliação e definição de objetivos comuns aos dois grupos, os comprometidos com o “deixa disso” propuseram um evento de integração, uma reunião em que compareceram mais de trinta pessoas do time, da gestão e, portanto, da Casa. Um suspiro de esperança nascia e o diálogo parecia ter-se instaurado novamente sem nenhum entrave. Teve-se a impressão de que seria possível buscar um denominador comum e reestreitar os laços entre todas e todos, deixar as diferenças de lado e voltar a uma prática que sintetizasse os interesses da gestão e do time, portanto da Casa. As perspectivas que já eram boas iam ficando cada vez melhores: as dívidas com banco e imobiliária tinham acabado (embora a dívida com pessoas ligadas à gestão e ao time permanecesse). A trégua não vinha apenas das demandas da política interna, mas também das demandas financeiras.
Nessa mesma época, dois jogadores foram acusados de agressão machista por uma mulher que se incorporara ao time no decorrer de 2012. Uma carta foi escrita por ela denunciando a agressão e equivocadamente respondida pelo time e Casa. O conflito teve um desenrolar que merece ser detalhado em outra oportunidade. O que importa é que uma nova desavença política e ideológica se instituía e novas diferenças se reconheciam. Na pluralidade de opiniões que surgiram, é difícil traçar uma divisória entre grupos; grosso modo, alguns indivíduos minimizavam o fato e a acusação de agressão, ao mesmo tempo em que esvaziavam qualquer debate; outros se recusavam a minimizar o ocorrido e se propunha a refletir além do que já tinha sido discutido. Apesar de ser forçado concentrar em dois campos todas as impressões e posições quanto ao caso, o fato é que as diferenças de opinião acabaram segregando ainda mais os dois grupos que já estavam formados, no caso time e gestão. Os debates desgastaram as relações, os canais de diálogo foram se tornando cada vez mais etéreos. Estigmas em série passaram a ser produzidos e acusações mútuas foram trocadas entre pessoas que se reconheciam pertencentes a cada um dos grupos. O debate intenso parecia tê-los transformado em dois corpos irreconciliáveis, matéria e antimatéria. Como consequência desse episódio, um montante expressivo de pessoas se afastou do time e da gestão. Algumas possibilidades: os mais distantes da realidade da Casa não tinham o menor interesse em conhecer de perto o que estava se passando entre os coletivos envolvidos, bastava ouvir falar do caso para cortar laços. Os mais próximos se desgastaram com a intensidade do debate a ponto de não reconhecerem mais o potencial da Casa em atingir qualquer objetivo que tenha sido traçado até então.
A divergência ideológica em torno da questão de machismo marcou ainda mais as diferenças entre gestão e time. Mais do que nunca a identidade daquele grupo gestor estava demarcada. O que parecia ser o encontro entre Eco e Narciso tornou-se a consolidação do desencontro ideológico naquele espaço.
Quarto momento: da prestação de serviços
Ao final desse processo, quando veio a calmaria, percebeu-se que, mesmo com dívidas reduzidas a aluguel e conta de água, shows e festas (cultura herdada da sede antiga) não estavam sendo suficientes para quitá-las. Com urgência buscou-se uma solução para a Casa não acabar. Uma nova reunião foi convocada, a gestão levou o problema e algumas ideias, mas aparentemente a responsabilidade de resolvê-lo era mais uma tarefa para alguns. Foi posta em prática uma das ideias levantadas: um sistema de financiamento por “sócios” que se comprometeriam com uma ajuda mensal para se pagar o aluguel. Funcionou, e parte do time contribuía financeiramente com a existência da Casa assim como já vinha contribuindo há tempos, principalmente quando as contas não fechavam e precisava-se de doações para pagar as contas. A contribuição financeira foi formalizada.
Quando os tão esperados dias melhores chegaram e as contas pareciam ser pagas em um passe de mágica, sem a necessidade de realização de eventos em todos os finais de semana buscando desesperadamente pagar o aluguel, a gestão se reduziu a quatro pessoas. O desgaste decorrente dos conflitos ideológicos mostrava seus efeitos. Agora a Casa era gerida por duas pessoas que jogavam no time e outras duas que não jogavam. Com o passar do tempo, novas pessoas se agregaram e algumas antigas retornaram. Desde então, com uma perspectiva muito diferente da primeira fase, a Casa passou a ser gerida principalmente por pessoas que não jogam no time e que têm interesse em utilizar a Casa como canal de formação e divulgação político-cultural. Apesar de o convívio no espaço (gerido por esse grupo) com o time (que se absteve de tomar decisões ao longo de todo o tempo e instituiu essa tarefa como responsabilidade de um grupo rígido de pessoas) estar sendo cordial, havia um nítido afastamento, por parte do time, das responsabilidades burocráticas e da proposta político-cultural intencionada por membros da gestão, que teve que se apropriar do espaço a fim de mantê-lo a partir das demandas impostas e fazê-lo producente, a ponto de ter que delinear seus objetivos para organizá-lo efetivamente. Esse contexto foi obviamente construído de forma espontânea e não intencional ao longo da história da Casa, e foi resultado das práticas e dos discursos de todas as pessoas envolvidas nas disputas políticas e ideológicas ao longo dessa história, reconhecendo-as ou não. Os canais de diálogo acabaram sendo basicamente informais entre os dois grupos, a ponto de hoje a Casa Mafalda e Auto terem se dividido, em comum acordo, em dois coletivos que não compartilham mais nenhuma responsabilidade.
A análise dos fatos ocorridos ao longo desses dois anos de Casa Mafalda aponta o efeito da divisão de tarefas no coletivo: a produção de uma identidade de um grupo que se reconhece como diferente do restante do coletivo, estruturada pela afinidade de seus membros e consolidada por tal divisão. Tal separação foi justificada e reconhecida ao longo de todo o processo pela absoluta maioria dos envolvidos, embora os efeitos da institucionalização do grupo gestor tenha sido recorrentemente menosprezado por todas e todos. Acreditamos que isso não teria acontecido se no lugar da divisão de tarefas fosse combinada uma rotação das tarefas. Claro que é difícil para alguns conciliar a vida privada com reuniões periódicas, assim como garantir que a troca de informações seja circulada de modo a garantir que todos e todas estejam a par de todos os encaminhamentos. Ainda assim, acreditamos que coletivos que se pretendem horizontais devem garantir a existência de mecanismos que impeçam a institucionalização espontânea de grupos de afinidade a fim de coibir rachas, tão comuns entre coletivos.