Sem Estado, Sem Mercado! É possível a resistência cultural dentro das instituições?

Por Suna

Se pararmos pra prestar atenção no Brasil dos dias atuais, torna-se cada vez mais visível o acirramento de uma luta política e ideológica dentro do campo cultural. O recorte feito aqui é atual, no entanto é importante ressaltar que essa disputa em questão não se trata de uma realidade exclusiva de um determinado momento histórico específico, não sendo raro encontrarmos em diversas sociedades a disputa de poder dentro deste espaço; trata-se de um terreno fértil em que a manipulação das movimentações culturais converte-se em uma ferramenta política bastante eficaz.

Em um país onde gritam os contrastes, com a sociedade da informação cada vez mais desenvolvida, essa luta no campo cultural se torna ainda mais estratégica dentro do contexto político. Em nosso contexto, as forças ideológicas hegemônicas (controladas por uma elite) trabalham sempre com o intuito de se apropriar dessa esfera, a qual podemos reconhecer como um dos mais importantes canais de disseminação de interesses, sobretudo através da manipulação do imaginário coletivo. Existem diversas formas que contribuem para a concretização desse objetivo. Dentre elas, podemos pontuar algumas que costumam ser as mais efetivas.

A primeira delas, dentro de um âmbito mais “oficial” e tradicional, trata-se da supervalorização dos chamados “cânones” artísticos, que validados pela educação institucional (universidades, escolas, vestibulares, programas políticos pedagógicos, etc.) qualificam através de debates em comunidades acadêmicas restritas os objetos artísticos em gradações do que é o “bom” (aceitável e necessário para a formação) e o que é o “ruim” (descartável e até prejudicial), atribuindo critérios de valores arbitrários através dos quais classifica-se o nível de importância dos objetos e indivíduos, legitimando apenas determinados “escolhidos”. Os códigos utilizados para essa qualificação normalmente não são acessíveis a todos; a grande maioria é excluída desse processo de conhecimento através de diversas situações, criando-se assim elites intelectuais conhecedoras do que é classificado como importante ou não para a “formação humana”.

Outra forma estratégica encontra-se dentro de uma realidade mais atual e específica, a partir do momento em que o Estado começa a criar políticas de financiamento cultural, iniciando uma abertura sistemática de diversos editais que, em boa parte das vezes, contribuem para a normatização de indivíduos; cada vez mais esses indivíduos se prendem aos moldes dos pré-requisitos elencados por esses documentos, editados dentro dos interesses de quem os idealiza. Hoje, o Minc contribui como nunca para o aumento da burocratização da criação artística; através disso nascem verdadeiras máquinas de ganhar editais, que muitas vezes estreitam laços com partidos políticos ou algum tipo de grupo que possa trazer benefícios e ajuda para a concretização mútua de interesses.

Nessa disputa, há ainda outra força, normalmente conhecida por indústria cultural, que atua no sentido da massificação; quem escapa da mencionada domesticação institucional (um grande número de “excluídos”, tendo em vista que o acesso ao ensino superior é ainda bastante pequeno e o sucateamento da educação de base chega a ser assutador), é bombardeado por um bem estruturado aparato midiático que vende, por exemplo, a necessidade da leitura dos best-sellers do momento, a urgência em ir ao cinema para assistir os filmes mais badalados, o conhecimento das músicas emplacadas pelos jabás das rádios, subjugando dessa maneira o contato com as artes a uma lógica puramente de consumo e/ou status social.

Dentro dessas formas de enquadramento, músicos, cineastas, escritores, intelectuais – agentes criadores como um todo – passam a submeter suas criações a uma lógica profissional e/ou mercantil, que, em grande parte das vezes, direciona as produções ao encontro dos interesses dos “patrões” financiadores, dependendo da classe à qual ambos se inserem. Essas mencionadas formas de apropriação da esfera cultural não necessariamente competem entre si; elas se entrecruzam em determinadas situações a partir do momento que movimentos culturais desenvolvidos pela base passam a se transformar em nichos de mercado controlados por um centro (controlado ou subjugado, por sua vez, ao poder das classes dominantes). A falta de autonomia nas criações privilegia exclusivamente as demandas do capital, e dos detentores do poder.

Às margens desse quadro, de forma menos normatizada, encontramos uma força que age (consciente ou não) como forma de resistência e subversão: a cultura independente, das ruas e dos movimentos sociais. Trata-se de uma das forças que tenta escapar do poder hegemônico, que por sua vez trabalha para cooptá-la de todas as maneiras possíveis.

Esse movimento marginal de cultura independente sobrevive e resiste em muitos lugares às inúmeras investidas do capital e do Estado. Saraus da periferia são escondidos e muitas vezes até alvos de repressão policial; autores marginais e periféricos são classificados pelas “academias” como subliteratura; culturas como o punk e o hip-hop, quando não criminalizados e reprimidos, sofrem investidas sedutoras do mercado a fim de diluí-los e finalmente diminuir e desmobilizar suas forças.

Dito isso, fica algumas questões: É possível manter a resistência cultural dentro da lógica de mercado, institucional ou de financiamento estatal? A liberdade criativa consegue conviver com a lógica patrão/empregado, financiador/financiado, etc, sem ser contaminada por interesses externos à expressão estética?

São algumas perguntas bastante difíceis de responder dada a complexidade dessas relações, porém é visível a urgência em debater o assunto, apesar da enorme inclinação pessoal em defender a autonomia e acreditar que não precisamos de patrões, sobretudo para direcionar nossas formas de expressão.

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