A questão de gênero e a esquerda: a experiência da Casa Mafalda

Este texto foi escrito pelas mulheres que participam do coletivo gestor da Casa Mafalda.

Comumente, a questão de gênero é silenciada ou até mesmo negada pelas organizações de esquerda. A justificativa encontrada para isso muitas vezes é: somos de esquerda, portanto não somos machistas.

Só que não. Ser de esquerda não te exime por completo de todas as referências que te foram impregnadas desde o seu nascimento. A partir do momento em que se diz: é meninao se coloca sobre este indivíduo, que ainda nem chegou ao mundo tudo que se espera delae. Só depois de muitas vivências reproduzindo essa lógica na qual se insere antes mesmo do nascimento é que se torna de esquerda ou de direita ou não se torna nada mais do que aquele ser meramente reprodutor do mundo-como-ele-é (ou seja, de direita sem saber, já que nunca se pensou que poderia ser diferente).

Portanto, ser de esquerda é uma posição política, assim como ser feminista. Não se livra de tantos anos de entendimento do mundo sobre o capitalismo e o patriarcado assim, de uma hora para outra, assim como não se muda posturas que te tornam machistas também de uma hora para outra.

Não é uma condição natural dos indivíduos de esquerda ser feminista, assim como não é condição natural da mulher também. Do mesmo jeito como não se nasce mulher, torna-se, como já diria Simone de Beauvoir, também não se nasce feminista, torna-se. Da mesma forma como não se nasce de esquerda. E se é assim, com nós mulheres, porque seria diferente com os homens?

Talvez eles acreditem nesta falácia que relaciona diretamente ser de esquerda com o feminismo, pois eles normalmente diante do seu privilégio, não conseguem enxergar todas as implicações do machismo em suas práticas pessoais e políticas. Nesse sentido, não agredir sua companheira já seria para eles sinônimo de não-machismo. Mas não podemos nos limitar a isso. O machismo dá-se por inúmeras vias e mesmo num relacionamento que se pretende libertário é preciso estar sempre alerta para tais práticas, tais tratamentos, que a opressão acontece de inúmeras formas, que agressão não é só física, que ela pode ser psicológica também, etc.

Por isso, construir espaços de convivência que tentem romper com essa lógica patriarcal, na qual a sociedade está estruturada é muito difícil! Exemplo disso é o processo pelo qual a Casa Mafalda vem passando desde 2012. Processo que se iniciou com uma questão de gênero e que vem se desdobrando em inúmeras ações e discussões sobre o tema.

Acontece que este processo começou a se desenrolar de maneira bastante atabalhoada. Atabalhoada porque o episódio que lhe serviu de estopim, por mais polêmico que possa ter sido, teve inegáveis elementos de opressão de gênero, que se deu toda num âmbito virtual e que teve desdobramentos extremamente desastrosos.

Mas, foi ali, depois daquele episódio, que o assunto começou a ser enxergado com mais seriedade. Por incrível que pareça. É claro que o assunto dividiu opiniões, é claro que algumas pessoas defendiam os caras, ninguém defendia as meninas, que quase nenhuma mulher foi ouvida naquela ocasião – só depois que a “merda” estava feita fomos chamadas pra conversar. E o mais incrível, num primeiro momento é que fomos chamadas pra conversar para nos posicionarmos do lado dos caras. Mas como, se o caso foi de uma agressão de gênero?

O fato é que sim, claramente foi uma questão séria de gênero, mas que poderia ter sido resolvida de outra forma. Tentamos diálogo com os dois lados da questão e não conseguimos. Fomos tidas como submissas, como machistas, como traidoras até.

Mas foi ali que tudo começou para nós, mulheres. Pois antes era difícil nos posicionarmos como parte integrante do grupo. Antes éramos loucas. Antes não éramos bem vistas jogando futebol com eles. Antes éramos “apenas” suas namoradas. Hoje somos nós. Poucas, mas com voz.

Mas por que nós, mulheres, tivemos a opção  de permanecer no coletivo, tencionando a questão de gênero? Porque as mulheres que ficaram na Casa, o fizeram principalmente por acreditar que um mundo com relações livres de opressão deve ser composto por homens e mulheres. E que os homens precisam entender onde está o erro. Porque determinadas atitudes oprimem. Claro que não queremos “salvar” ninguém, mas caminhar juntas na mesma direção.

Hoje, estamos nesse processo. Longo, mas no qual existe uma abertura imensa dos companheiros de nos ouvir, de nos entender, de nos apoiar, de caminhar junto. Recentemente tivemos um novo caso de agressão e a postura foi totalmente outra. Tiramos o cara da Casa para não constranger a companheira. Tentamos dialogar para problematizar o ocorrido, mas o cara em questão não entendeu sua ação como uma agressão, diante disso pedimos para que ele não voltasse mais nem participasse das atividades da Casa.

Isso não significa nem de longe que as questões de gênero foram sanadas e que o coletivo se encontre às mil maravilhas com as mulheres. Muito pelo contrário.

No entanto, muitas discussões estão em andamento algumas levadas a sério, outras não (ou não por todos). E desde aquele episódio fatídico, muitas mulheres saíram da gestão da Casa por desgaste, por não aguentar a discussão, por outras questões pessoais.

Hoje temos um grupo de formação sobre gênero. Levantado como necessidade pelos caras que querem entender mais sobre a questão. E é bonito ver nossos esforços repercutirem na nossa rotina. Nos sentimos orgulhosas da rede de apoio e solidariedade que viemos construindo.

Nos deixa feliz olhar essa nossa caminhada. E nos faz lembrar da importância das microrrevoluções e ação direta, para que enfim consigamos construir um espaço – ou um mundo, porque não? – livre de opressões de todos os tipos.

Mas sigamos em frente porque o caminho é longo…

2 Responses

  1. Ler esse texto foi como ler a história da construção feminista que viemos fazendo. As mesmas discussões, o mesmo processo, as mesmas desculpas…Se mostrar esse texto para os espaço que frequento dirão que falam sobre nós. Essa é só mais uma prova de que de fato o machismo não é fácil de ser descontruido, e que militantes libertários não tornam-se automaticamente não-opressor de gênero, que temos as lutas em processos iguais porque a construção social é a mesma. Precisamos trocar essas experiências. De como cada coletivo agiu em situações iguais, como as coisas se deram, como de fato houve construção e onde não teve. Quando o inimigo é declarado é fácil agir, mas quando o inimigo é alguém entre nós, é muito confuso…Há um tempão quero colar no espaço e nunca dá. Muitos companheiros já foram. Mas no momento fortemente a necessidade de trocas de experiências, ao menos para mim…

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